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sábado, 16 de abril de 2011

Pseudestesia

Por entre os cacos de uma garrafa tentava me equilibrar. O cheiro da fumaça começava a provocar ânsia em mim. Senti uma dor fina no pé, percebi que um caco conseguira vencer meu malabarismo. Peguei um guardanapo, tirei o caco e estanquei o filete de sangue. Saí com as sandálias em uma das mãos e na outra o guardanapo.

O ar fora da cafeteria era infinitamente mais respirável. Olhei para trás e senti vontade de voltar e ficar sentada lá dentro para sempre! Seria meu mundo... Segui em frente. A madrugada já ia alta.

Mais adiante deparei-me com alguns jovens que tocavam violão e cantavam, totalmente alheios ao mundo e aos problemas. Pareciam felizes, imersos em letras de protesto e acordes inventados. Quis parar e contemplá-los melhor, apreciar aquele momento, quem sabe até dividir algo?! Mas o vento gélido da madrugada me impediu.

Continuei minha caminhada solitária após uma noite solitária. Mais cinco minutos e estaria em casa. Antes, porém, parei em frente ao jardim da praça e lá continuava ela, intacta: a roseira! Pleno inverno e aquela roseira insistia em permanecer ali, linda! Parecia querer me provocar com toda aquela beleza inabalável!

Soltei uma gargalhada irônica ao pensar em arrancá-la. Que idéia, tolher a beleza alheia! Voltei a caminhar e cheguei em casa. A roseira ficara na praça. Comigo agora apenas minha casa. Peguei o celular que deixara em casa sobre a cama. Nenhuma ligação. Pensei em ligar para Jorge. Sentei na cama e olhei o relógio: três da manhã. Suspirei e conclui que não precisaria ligar para o Jorge, ele já estava presente em tudo, em cada canto do meu quarto.

Uma lágrima escorreu sobre minha face enquanto lavava os pés. O frio do mês de maio já começava a incomodar. E nada mais fazia sentido em minha vida desde que Jorge mudara o sentido de nosso relacionamento. Enxuguei os pés e vesti uma calça de moletom e uma camiseta. “Agora está tudo bem”, pensei. “Jorge está feliz e tenho que ficar também.”

Tentei ordenar os pensamentos para escrever uma crônica. Abri um vinho e lembrei-me da roseira. Esbocei algumas palavras sobre aquela roseira e gostei. Coloquei as anotações sobre a escrivaninha e deixei a garrafa de vinho pela metade. Decidi que não queria apagar as lembranças de Jorge. E de ninguém. Adormeci com o gosto do vinho e o perfume da rosa.

*

Fiz um café e reli a crônica que escrevi na madrugada. Algumas coisas ainda pareciam confusas. Todavia, a crônica era excelente! Decidi enviá-la para um amigo que poderia publicá-la, por que não? Enviei a crônica por e-mail e meia hora depois recebi a resposta inesperada: sim, publicariam minha crônica!

“Incrível! Tenho que ir à praça rever aquela roseira!”

Gargalhei e lembrei-me de toda a noite passada. A boemia solitária me fizera bem. Ou seria o vinho? Talvez a falta de Jorge?

Jorge! Liguei para ele antes de ir até a praça, mas ele não atendeu. Me senti novamente pequena e sozinha. Não podia mais dividir meus dias com ele. Nem minhas alegrias.

“Vou à praça.”

O dia estava frio. Vesti um casaco e saí. Algumas crianças brincavam no parquinho perto da praça. Parei e lembrei que não sabia onde estava a roseira. Andei por toda a praça e não a encontrei.

“Como? Onde está? Ela está sempre aqui me desafiando, tão linda, tão inabalável! Onde está?”

Pensei que as crianças poderiam tê-la quebrado. Que idéia tola!

“Errei de praça? Não, não, é aqui, tenho certeza!”

O jardineiro aparava a grama ao lado do parquinho. Uma ponta de dor transpassou meu coração.

“Ele cortou a roseira!” , pensei.

Perguntei a ele sobre a roseira, expliquei todos os detalhes.

“Era a única que ainda florescia, tão bonita! Rosas vermelhas, um vermelho intenso! O único problema era o excesso de espinhos, uma vez quis pegar uma rosa, mas fui impedida pelos espinhos, furei dois dedos! O senhor a podou?”

O jardineiro me olhou como se não tivesse entendido. Repeti a pergunta:

“O senhor a podou hoje? Passei aqui de madrugada e ela estava aqui. Até escrevi uma crônica sobre esta roseira! Tenho de vê-la novamente...”

“Senhora”, o jardineiro começou, “nunca tivemos roseiras por aqui. Trabalho nesta praça há mais de dez anos e nunca vi esta roseira. A senhora deve estar confundindo as praças!”

Senti o chão se abrir aos meus pés.

“Como?”

Refiz mentalmente o caminho da madrugada. Olhei para trás e vi a cafeteria. Sim, é essa a praça!

Sentei para me acalmar. Vi no chão o guardanapo com meu sangue. Meu celular tocou. Era Jorge. Estava tão atordoada que quase não atendi. Levantei para atender e quando olhei para frente lá estava ela, com seu vermelho intenso e seus espinhos, intacta: a roseira!


Galeraa...primeiro texto, primeiro conto! Espero que apreciem...

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