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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Liberdade, por Danilo Alex da Silva...

"Essa era a palavra certa para definir a sensação suprema, dentre o turbilhão de emoções que o atravessavam e arrebatavam naqueles momentos. Inigualáveis, insuperáveis, indescritíveis e inesquecíveis momentos que transformavam sua vida chata e monótona em uma aventura sensacional e alucinante. O que causava tudo isso? Uma combinação perfeita: feriado ou fim de semana, uma boa dose de disposição, estrada, vento. E ela. Como era bom poder olhar para ela, senti-la, trazê-la mais uma vez para a claridade do dia e vê-la reluzindo ao sol radiante de uma clara e quente manhã, quando o canto dos pássaros e a brisa morna enchiam seu coração de paz e alegria. Sim, ele a amava e amava trazê-la para a luz do dia, resgatá-la da úmida e fria escuridão de sua garagem. Durante toda a semana, ao sair da garagem para o trabalho, ele olhava de modo nostálgico para ela e soltava um suspiro, ansioso para que o fim de semana chegasse logo. Sentia um aperto no coração ao ter que deixá-la de castigo ali e ir de carro trabalhar. Mas finalmente chegava o seu dia de folga. Era tempo de estar com Milla. Batizara-a assim. Milla. Não era uma homenagem a ninguém em especial; apenas gostava do nome. Se algum dia tivesse uma filha, certamente a chamaria de Milla.
Os amantes do motociclismo vão compreendê-lo, pois sabem perfeitamente do que estou falando. Conhecem a alegria infinita de desfrutar cada sábado ou domingo, cada dia santo, cada feriado nacional ou cada folga que se obtém no serviço. Poder acordar bem cedo, vestir roupas confortáveis, colocar uma mochila nas costas, ajustar o capacete na cabeça e, montando sua máquina, ganhar o mundo lá fora, que aguarda para ser desbravado. Nada podia ser melhor do que se despir do empresário que era de segunda a sexta, se ver livre do aperto claustrofóbico do escritório, do terno que tolhia seus movimentos e da gravata que apertava seu pescoço. Nada podia ser melhor do que deixar para trás a selva de concreto, repleta de poluição, de violência, de ganância desmedida, de barulho, de horários, de estresse, de gente chata. Livre de tudo e de todos, de certa forma, livre até de si mesmo. Nessas horas, não era mais aquele quem lhe impunham que fosse. A moto e a estrada o libertavam, e então ele podia ser quem realmente era e gostava de ser. Na mente? Nenhum tipo de rumo definido. No coração? Muita ousadia. Na mochila? O básico, nada de relógio ou GPS; só algumas coisas realmente necessárias e seu celular, para o caso de algum imprevisto.
E então o cavaleiro e sua montaria partiam. Nada de horários estabelecidos, nem regras. Quando saía do perímetro urbano, a tão esperada jornada rumo à emoção tinha seu início.
A estrada. O sol. O céu. A paisagem. O vento atingindo furiosamente seu corpo enquanto ele e máquina ganhavam velocidade rumo o horizonte distante, tão distante que parecia inalcançável. Ele e sua motoca pareciam fundir-se em um só, uma mistura inédita de homem e máquina. Sentia Milla vibrar embaixo dele, que se encontrava confortavelmente acomodado sobre o banco macio e largo. Ele sorria de satisfação devido à vibração vigorosa da moto embaixo de si, o ronco possante do motor monstruoso que trabalhava incessantemente e em altas rotações. Seu coração pulsava rápido e a adrenalina era jorrada impetuosamente em seu sangue. Extasiava-se com o ronronar suave da máquina a cada vez que ele trocava de marchas. As grandes rodas giravam poderosamente no asfalto fervente. Os quilômetros eram carregados pelo vento e rapidamente desapareciam dos retrovisores; ficavam para trás e perdiam-se na distância, levando consigo os problemas e o nervosismo da semana. Essa era sua terapia.
Não conseguia entender como vários conhecidos seus gastavam fortunas e perdiam tanto tempo em divãs de psicólogos por causa do estresse cotidiano. Pegar a estrada com Milla era a sua terapia; e o “tratamento” nunca era enfadonho; mas emocionante e praticamente milagroso. Seria ele maluco como várias pessoas diziam? Sorriu ao lembrar que um amigo vendera uma casa para poder comprar a moto dos sonhos e então voar baixo pelas estradas, exatamente como ele fazia naquele momento. Seria isso loucura? O que se poderia definir como loucura, numa sociedade tão insana como a atual? Não, ele não era louco. Se fosse, concluiu que apenas os loucos sabiam de fato o que era felicidade. Passar por tantos lugares belíssimos, como pontes, cachoeiras, regiões montanhosas. Conhecer tantas cidades e tanta gente, pessoas comuns e outros como ele. Rodar junto com outros motoqueiros, as motos rugindo pela rodovia como um bando de bichos ferozes. Enfrentar com alegria chuvas, ventanias, trechos de asfalto acidentado. Sentir desse modo que a vida valia a pena ser vivida, cada segundo dela. E quando chegasse a hora, voltar para casa satisfeito e feliz. Viveria cada dia da semana pacientemente até que o fim de semana chegasse mais uma vez. Enquanto estava em seu escritório, as palavras do hino dos motociclistas ecoavam em sua cabeça: “Born to be Wild” (Nascido para ser selvagem). De fato, por mais que as circunstâncias tentassem aprisioná-lo, o sábado viria. Milla o esperava na garagem para mais uma aventura e a estrada os receberia com alegria. Ele nascera num dia normal, de um mês trivial, de um ano comum. Todavia, a certeza que o mantinha vivo era esta: viera a esse mundo para ser um homem livre. "



Texto do meu queridíssimo amigo Danilo Alex, em homenagem ao seu aniversário!

sábado, 17 de dezembro de 2011

Adele, Set fire to the rain

"I let it fall, my heart,
And as it fell, you rose to claim it,
It was dark and I was over,
Until you kissed my lips and you saved me,
My hands, they're strong, but my knees were far too weak,
To stand in your arms without falling to your feet,
But there's a side to you that I never knew, never knew,
All the things you'd say, they were never true, never true,
And the games you'd play, you would always win, always win,
But I set fire to the rain,
Watched it pour as I touched your face,
Well, it burned while I cried,
'Cause I heard it screaming out your name, your name,
When I lay with you I could stay there,
Close my eyes, feel you here forever,
You and me together, nothing is better,
'Cause there's a side to you that I never knew, never knew,
All the things you'd say, they were never true, never true,
And the games you'd play, you would always win, always win,
But I set fire to the rain,
Watched it pour as I touched your face,
Well, it burned while I cried,
'Cause I heard it screaming out your name, your name
I set fire to the rain,
And I threw us into the flames,
Well, I felt something died,
'Cause I knew that that was the last time, the last time,
Sometimes I wake up by the door,
The heart you caught, must be waiting for you,
Even now when we're already over,
I can't help myself from looking for you,
I set fire to the rain,
Watched it pour as I touch your face,
Well, it burned while I cried,
'Cause I heard it screaming out your name, your name
I set fire to the rain,
And I threw us into the flames,
Well, I felt something died,
'Cause I knew that that was the last time, the last time, oh,
Oh, no,
Let it burn, oh,
Let it burn,
Let it burn"

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Um pouco de Fernando Pessoa... "Não se acostume"

"Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.
Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.
Se achar que precisa voltar, volte!
Se perceber que precisa seguir, siga!
Se estiver tudo errado, comece novamente.
Se estiver tudo certo, continue.
Se sentir saudades, mate-a.
Se perder um amor, não se perca!
Se o achar, segure-o!"

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Santiamém (dezembro 2011)

Levanta a cabeça, menina. Olha pro alto. No canto do quarto apenas seus sonhos embrulhados em papéis de baixa qualidade, sem brilho e sem cor. Levanta a cabeça, menina. Abre a janela e sorri. Guarda os sonhos seus. Mas guarda em lugar seguro. Esqueça a vida alheia.
Consumida pelo nada enquanto ouvia Michael Bublé numa noite chuvosa de sexta. Esqueça as confusões, menina. Lembra dos bons risos compartilhados e se agarra a eles. Abre a coleção de pores do sol e encontra ali a verdade.
Durma então. A noite de sexta reserva tão pouco para tantos pensamentos. Descansa, menina. Guarda os sonhos seus.
Sonha então. As sutilezas e levezas da vida lhe são apresentadas sempre que ela vê o nevoeiro em certos olhares. Ela não quis ver, mas o tempo mostrou o que o coração sentiu naquele primeiro toque.
Acorda para ver as primeiras cores do dia, menina. O céu colore e descolore. É manhã baixa. As mesmas cores insistem, persistem, repetem, recolhem, povoam. Abre a janela e sorri. Morro alto, a cidade ali, aos pés. E as cores repetindo.
Desconstrua os planos. Esqueça as idéias e ideais, menina. Deixa pra lá quem não a quer bem. Guarda o dia para si, faz o que quiser. Grita, xinga, chora, sorria, esqueça. Novamente play e Michael Bublé toma a casa. Lembra das cores, do cenário matinal. Corra às compras. Compra um livro que é bom. E um cd da Adele. E uma caixa de cervejas importadas. E muito chocolate.
O sol tomou o céu, aqueceu o dia e descoloriu a noite. Ninguém parou para olhar. Era tão lindo. Repetia-se. E ninguém parou, menina.
O telefone. Olha para o telefone. E ninguém para compartilhar as cervejas importadas. Levanta a cabeça, menina. Olha pro alto. O dia se foi. Faz da noite uma brincadeira. Porque amanhã, menina, tudo se repetirá. E ninguém vai parar.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

José Saramago, Este mundo da injustiça globalizada.

"Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça
dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.
E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal
elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor."
18/03/2002

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Imperfectibilidade (março 2008)

Meus atos me mostram imperfeita
Minhas paixões contrariam meus ideais
Minhas verdades são mentiras veladas
Meus desejos, com o passar do tempo, tornam-se inatingíveis
Minhas lembranças escorrem entre meus dedos
Meu rosto já não é mais o mesmo
Meu sorriso busca sua boca...inútil
Minhas mãos acariciam seus traços leves à procura de minha resposta
Meus amores...meus amigos
Meu amor...mentira  velada, desejo inatingível, obra inacabada
Minha vida imperfectível depende da sua imperfeição
Ora...às vezes me esqueço: minha vida imperfectível não cabe na sua.

Estase (agosto 2006)


Infindáveis sonhos.
Insondáveis desejos.
A pequena mão trilhou o caminho das letras.
Os grandes olhos verdes buscaram irrefutáveis perguntas.
A boca calou inútil.
Súbitos relatos.
Intensa paixão.
A mente trabalhou a ermo.
O mundo, enfim.
A compreensão, a calmaria.
Estase. O corpo parou.
Os sonhos não eram mais infindáveis.
Desejos não mais insondáveis.
A descoberta.
A personalidade.

domingo, 24 de julho de 2011

Diacronia (julho 2011)

Boemia literária. Um pouco de cerveja e muito rock ‘n roll na cabeça. Probabilidade zero de encontrá-lo novamente. Possibilidade nenhuma de ele querer novamente. Discussões sartreanas em torno da mesa. Sobre os outros, o inferno. Quanta existência sem nenhuma essência! Uma não sobrepõe à outra. Elas simplesmente não existem em certos casos.
Muita cerveja e um pouco de rock ‘n roll na cabeça. Abri a janela e respirei. Dentro do carro tudo parecia tão pequeno. Lá fora um céu enorme. Adiante a boca que nunca mais beijei. O sorriso que nunca mais contemplei. A voz que nunca mais ouvi. Guardei tudo, tudo, tudo dentro da garrafa de cerveja. O momento era tão sublime, a garrafa era tão pequena!Lá dentro do carro o cheiro era absolutamente chamativo e eu ouvia, bem baixinho, bem comigo, a música que dizia “me envenene, quero ser sua vítima”. A dose foi forte. Mas acabou.
Restou para mim a tal boemia literária. E eu guardei. Ainda estou lá dentro do carro. Abro a janela e vejo o céu. Eu estou lá. Sonhos tão docemente divididos, sem nenhuma cumplicidade. Deito no banco e sinto seu perfume. Eu não lembro mais o aroma. Eu não lembro. Eu guardei.
A escolha o fez livre. A escolha me fez ansiosa. Subverto os papéis todo o tempo. Ainda estou lá e faço de tudo para me manter naquele espaço que nunca foi meu. Desespero-me diante de tão corriqueira situação. Eu queria mesmo era discutir Sartre... Diante dos outros, resta-me somente o inferno. Eu não me adaptei ao outro modelo. Quanta existência sem nenhuma essência! Em torno da mesa, queria ser existencial. Sonhos tão docemente divididos. Uma madrugada. Muito rock ‘n roll. Algumas cervejas. O gosto que nunca esqueço. E eu faço um corte diacrônico em minhas lembranças. E é efêmero. É tão efêmero que o agora já escapa das minhas mãos. É tão efêmero que a escolha me faz ansiosa. E o faz absurdamente livre. É apenas uma discussão sartreana. É apenas muito rock ‘n roll na cabeça e um pouco de cerveja. É apenas boemia literária. E a probabilidade zero de encontrá-lo novamente. Aquele não era o fim. Também não era o começo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Audioslave, Show me how to live

"O Rock and Roll é uma das chaves, uma das muitas, muitas chaves de uma vida complexa. Não fique se matando tentando todas as outras chaves. Sinta o Rock and Roll, e então provavelmente você vai descobrir a melhor chave de todas." ( Pete Townshend )

Esse é para nós, meninas! Apreciem, Chris Cornell... Let's rock....

terça-feira, 12 de julho de 2011

Pearl Jam, Black

"Sheets of empty canvas,
Untouched sheets of clay...
Were laid spread out before me
As her body once did.

Oh all five horizons
Revolved around her soul
As the earth to the sun

Now the air I tasted and breathed
Has taken a turn
Oh and all I taught her was everything
Oh I know she gave me all that she wore
And now my bitter hands
Shake beneath the clouds
Of what was everything?

All the pictures have
All been washed in black,
Tattooed everything

I take a walk outside
I'm surrounded by some kids at play
I can feel their laughter so why do I sear?

Oh and twisted thoughts that spin 'round my head
I'm spinning, oh, I'm spinning
How quick the sun can drop away

And now my bitter hands cradle broken glass
Of what was everything?
All the pictures have, all been washed in black, tattooed everything...

All the love gone bad
Turned my world to black
Tattooed all I see, all that I am, all I'll be...yeah...

I know someday you'll have a beautiful life,
I know you'll be a star,
In somebody else's sky,
But why, why, why
Can't it be, oh can't it be mine?"


Amanhã é o dia internacional do rock...vamos começar a comemorar! Pearl Jam!!

domingo, 10 de julho de 2011

Nirvana, In bloom...

Um pouco de rock 'n roll pra animar o dia e a semana... Um pouco de Nirvana, em um de seus melhores vídeos. Apesar de tudo, Nirvana sempre! Grunge sempre! Mister Cobain sempre... Apreciem, o vídeo é muito engraçado! Ótimo dia e ótima semana...

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Lygia Fagundes Telles: As cerejas

"Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, “vocês não viram onde deixei meus óculos?” A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, “esta receita é nova...” Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, “fico exausta no calor...” Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. “Você levou as velas à tia Olívia?”, perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.

A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.

Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.
- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!
Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.
- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...
O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.
- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?
- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...
Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.
- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?
Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, “pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos”. Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.
- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!
Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.
- Tem charme...
Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.
- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.
Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.
- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?
- Só na folhinha.
Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.
- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.
Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.
- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...
Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?
Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.
Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.
- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?
Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.
- Diz que ele se suicida, Marcelo...
- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.
Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.
- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.
Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.
Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.
- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.
Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.
- Ela é bonita, não?
Ele bocejou.
- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.
- Vulgar?
Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.
- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.
- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!
Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.
- Tem dois buracos em lugar dos olhos.
- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.
Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.
Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.
Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.
- Sofro tanto com o calor...
Madrinha tentava animá-la.
- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.
Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.
- Você acha que vai chover?
- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.
- É da idade, querida. É da idade.
- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.
- Ele monta tão bem. Tão elegante.
Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: “É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco”. Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.
Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.
- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.
Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.
- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!
Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.
Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.
- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.
Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.
- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.
- E Marcelo?
- Não sei, deve estar dormindo também.
Madrinha aproximou-se com o castiçal.
- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!
Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.
- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.
Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:
- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.
Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.
Sentou-se na beirada da minha cama.
- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?
Prendi a respiração para não sentir seu perfume.
- Estou.
- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?
Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.
- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.
- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!
- Comprarei outras.
Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.
- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.
Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.
- Anjinho cego, que idéia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?
Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos."
  Este conto está no livro Oito contos de amor (1997)

Ps.: quando crescer, quero ser como ela, Lygia Fagundes! Ótima semana a todos!

terça-feira, 28 de junho de 2011

Um pouco de Luis Fernando Veríssimo...

"Dez Coisas que Levei Anos Para Aprender

1. Uma pessoa que é boa com você, mas grosseira com o garçom, não pode ser uma boa pessoa.


2. As pessoas que querem compartilhar as visões religiosas delas com você, quase nunca querem que você compartilhe as suas com elas.


3. Ninguém liga se você não sabe dançar. Levante e dance.


4. A força mais destrutiva do universo é a fofoca.


5. Não confunda nunca sua carreira com sua vida.


6. Jamais, sob quaisquer circunstâncias, tome um remédio para dormir e um laxante na mesma noite.


7. Se você tivesse que identificar, em uma palavra, a razão pela qual a raça humana ainda não atingiu (e nunca atingirá) todo o seu potencial, essa palavra seria "reuniões".


8. Há uma linha muito tênue entre "hobby" e "doença mental".


9. Seus amigos de verdade amam você de qualquer jeito.


10. Nunca tenha medo de tentar algo novo. Lembre-se de que um amador solitário construiu a Arca. Um grande grupo de profissionais construiu o Titanic."
Luís Fernando Veríssimo


Compartilhando um pouco desse gênio, já que ando com preguiça de escrever...rsrs
Apreciem... 

quarta-feira, 15 de junho de 2011

A lua (agosto 2006)

Em homenagem ao eclipse lunar de hoje...
A lua...
Infinita, sublime. No céu, encantadora.
À noite, luar inexplicável. No céu, despertando volúpia.
E eu...
E eu aqui, beijando sua boca, quase ficando louca, buscando a atração sem explicação.
Química...
Alquimia da lua.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Invariável (junho 2011)

"Invariavelmente diferente. Decidida a não mais tocar aquele recanto sagrado, isolado pelo tempo e esquecido pela distância. Ela subiu pela última vez aqueles degraus. Lá de cima, contemplou a paisagem. Recostou-se no parapeito e lembrou-se da promessa da adolescência. Eram cinco. E certa vez também fizeram aquele caminho. Cada uma em seu lugar agora.
Quis percorrer todas as ruas. Quis sentir todos os cheiros e gostos novamente. Tudo agora! Quis chorar e sorrir todos os momentos. Conseguiu apenas sentar-se em um banco e rabiscar algumas poucas palavras.
Trazia em si tudo o que se passara. Teve vontade de colocar tudo aquilo em uma caixa e enterrar. Para sempre! Ou não. Talvez, daqui alguns anos, retornasse e revivesse as memórias. A sensação era tão estranha. Euforia, medo, certeza, paciência. Tudo se misturava. Já não tinha pressa. Mas queria viver logo a nova vida desenhada aos poucos diante dos pés.
Distante. Ficara para trás num repente. Apenas o novo enxergava. Apenas o novo apresentava. Apenas o novo satisfazia. Mesmo assim, parou e fitou longe aquela cena. Escutou longe aquele barulho. Sentiu na boca aquele gosto. E o coração disparou como todas as vezes.
Tudo aquilo em uma caixa e enterrar. Tudo. Menos ele. Ele não. Ela o levaria consigo. O mundo é pequeno e estranho. Eles ainda hão de encontrar-se. Talvez sem se reconhecerem. Mas hão de encontrar-se. As lembranças ainda nela tão vivas. Todavia, não há de ser agora. É para depois. Sem pressa. Tudo é um círculo. Agora é para o novo, a euforia.
Os degraus. Olhou para baixo. Voltou-se e contemplou novamente a paisagem. Não tocaria mais aquele recanto sagrado. Fechou os olhos e viu cinco amigas fazendo promessas iguais àquela. Não iriam cumprir. Desceu pela última vez aqueles degraus. Colocou tudo em uma caixa e enterrou. Tudo, menos ele! Ela o levaria consigo. Invariavelmente, diferente."

terça-feira, 24 de maio de 2011

(In)Certezas (outubro 2008)


"Descobri que não quero descobrir-me.
Nem a mim e nem ao mundo. Quero apenas o silêncio estrondoso dos ponteiros do relógio, o silêncio frágil do vento de agosto, o silêncio estagnado do latido dos cães ao longe... Quero o silêncio mórbido do seu desejo. Quero o silêncio inquietante de suas palavras. Quero o silêncio enigmático de seu olhar perdido entre escolhas incertas e promessas malfeitas. Quero o silêncio do que já passou. E não quero falar do que ainda virá."

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Ausência (agosto 2009)


"Gosto de ouvir sua respiração no silêncio do meu quarto.
Gosto do som da sua voz, em tom de ironia, tentando provocar minha ira.
Gosto do seu olhar interrogativo acreditando em minhas meias verdades.
Gosto do calor das suas mãos em dias que nada se espera de você.
Gosto da sua boca quente sobre a minha, tentando me convencer que minhas lágrimas e dúvidas não são a melhor saída.
Gosto das suas dúvidas. Gosto das suas inquietações. Gosto das suas incertezas. Gosto dos seus sonhos. Gosto das suas habilidades. Gosto da sua desorganização.
Gosto de ver você, despojado, jeans e camiseta e a barba sempre por fazer.
Gosto de ouvir suas bobagens ao telefone.
Gosto quando se assusta ao me ouvir dizer que acabou.
Gosto do seu perfume em minha cama.
Gosto quando você provoca em mim uma insônia imensurável.
Gosto quando me surpreende. Gosto também quando simplesmente me esquece.
Ouço agora sua respiração, sua voz. Sinto suas mãos e sua boca. Esboço um sorriso. E gosto. O que não gosto agora é essa ausência interminável.
Não gosto quando você não está aqui."


O verbo principal hoje seria(e é) conjugado no pretérito imperfeito do indicativo... 
"De tudo fica um pouco. Não muito." (Drummond)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Poema (Carlos Drummond de Andrade)

"É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência"



Um pouco desse gênio mineiro... Drummond! Apreciem...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Pórfiro (junho 2010)


"Olhos tristes me perseguem. Não consigo entender o que dizem. Soluçam baixinho algumas pessoas. Alguém grita desesperadamente.
O pôr-do-sol enobrece o entardecer. No alto da cidade, observo a cena com paciência, curiosidade e tristeza. A visão é perfeita, daqui vejo todo o descampado. Acompanho imparcial um funeral.
Quão irônica é a vida! Ou seria a morte? O sepultamento segue e não consigo me desvencilhar desta cena. O cemitério é um parque gramado, cheio de cruzes e fotos de rostos desconhecidos. Seguem-se datas anexas às cruzes. Para mim, aleatórias. Para quem participou daqueles dias, inesquecíveis.
O pôr-do-sol teima em emoldurar minha visão... é tudo tão milimétrico! É o fim. O fim do dia. É o fim de uma vida. Não consigo identificar se era um homem ou uma mulher. Era apenas uma vida. Agora é um corpo, sepultado no mais belo pôr-do-sol que já vi. Teria aquele corpo feito tudo que gostaria durante a vida? E essa vida, fora breve ou longa? Amara muito? Deixara algum amor? Vira um pôr-do-sol como esse?
O caixão é colocado na cova. Alguém diz poucas palavras e a terra começa a ser jogada. O sol já não brilha. Agora apenas nuvens alaranjadas enfeitam o céu. O sol foi embora brilhar do outro lado do mundo. Fecha-se a cova, que se transforma em túmulo. As pessoas saem sem pressa, em silêncio. Algumas ainda choram. Os coveiros terminam o serviço. Por enquanto, há apenas uma cruz. Daqui alguns dias, talvez tenha ali também um epitáfio e uma foto. E duas datas.
As luzes da cidade clareiam a semi-escuridão da recém chegada noite. Recobro a consciência. Tenho que seguir a vida. Todos já se foram. Ontem, era uma vida. Hoje, um corpo. Amanhã, uma lembrança."

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O telefone (dezembro 2009)


"O tilintar do telefone acordou Maria Júlia. Sentia o coração disparado, a boca seca e até certa falta de ar. Acendeu a luz do quarto e correu para a sala. Tropeçou em uma cadeira que estava no corredor. Uma lágrima de dor escapou-lhe. Ao chegar ao telefone a pessoa do outro lado já desistira. O telefone parou de tocar. Ainda em um suspiro de esperança tirou o fone do gancho. Ouvia-se apenas o tom de linha.
- Que droga! – exclamou, em um misto de raiva e tristeza.
Olhou para o relógio. 01h30min, a madrugada já começava a mostrar-se. Pegou uma coberta e encolheu-se no sofá. Sentiu os pés esfriarem.
- Seria ele? – Maria Júlia perguntou-se. Os olhos iluminaram-se. – Mas, a 01h30min da manhã? Por quê?
Maju, como era chamada desde a infância, era uma jovem mulher de 27 anos. Trabalhava como editora de uma revista sobre política e não se sentia mal por isso. Todavia, sonhava mais alto. Queria publicar seu livro, tornar-se uma escritora reconhecida. Morava sozinha em um pequeno apartamento alugado. E há um ano insistia num romance que lhe consumia a tranqüilidade.
Prostrada no sofá, Maju sentiu uma enorme vontade de gritar para aliviar a angústia daquele momento. Aterroriza-se com muitos pensamentos:
- Que espécie de namorado é esse? Ele me esqueceu aqui sozinha, simplesmente me esqueceu!
Embaraçada com as lágrimas, que vinham junto com os pensamentos aterrorizantes, lembrou-se do celular desligado e esquecido sobre a escrivaninha. Deu um pulo.
- Será que ele tentou ligar no celular? – animou-se, mas logo se puniu.
-Deixe de ser burra Maju, não era ele! Com certeza era engano, alguém querendo uma pizza, como se aqui fosse uma pizzaria! Bem poderia ser, ah poderia!
Maju resistia em ir até o quarto, pegar o celular e ligá-lo. Só de pensar em tal hipótese o coração disparava, a boca ficava seca e sentia vontade de vomitar.
- E se não tiver nenhuma ligação dele? Não vou ligar o celular, não vou. Ligo pela manhã, é isso. Mas vou sofrer até amanhã? Melhor saber agora... Não, não vou ligar.
Levantou-se do sofá e começou a caminhar pela pequena, contudo aconchegante sala. Ela ainda trajava o vestido preto, muito elegante e um tanto sexy, o qual esperava provocar suspiros no namorado. E também tinha o rosto maquiado, uma maquiagem suave. Os olhos estavam vermelhos e inchados por conta do choro.
Maria Júlia desligara o celular após ligar insistentemente para o namorado. E fora ignorada. Depois de meia-hora, ele desligara o celular. Então, ela caíra em um pranto sufocante, uma dor lancinante. Chorou ininterruptamente durante uma hora. Desfaleceu tão cansada que estava. Acordou com o telefone tocando na sala.
- Não posso mais suportar isso! Por que me presto a esse papel? Mas, ele me é tão importante...
A visão ficou turva. Pensou que fosse desmaiar.
- Pra quê tanta angústia, meu Deus?
Deitou-se novamente. Pegou a coberta e encolheu-se no sofá. Olhou para o relógio. Uma hora já se passara naquele tormento sem fim. Maju quis levantar-se e ir até a cozinha preparar um café. Porém, viu-se invadida por um sono tão súbito que lhe desapareceram as forças.
- Quem teria me ligado? – foi a última coisa que pensou antes de cair num sono profundo.


- Alô? – Maju atendeu ao telefone sem saber o que estava fazendo ou falando. O coração estava a ponto de explodir. – Alô? – disse mais uma vez. Deixou o telefone cair. Os primeiros raios de sol iluminavam a sala e davam um aspecto tranqüilo para aquele despertar. Tranquilidade que contrastava com o aspecto sombrio de Maju.
- Alô?- disse outra vez enquanto pegava o telefone.
Ninguém respondeu. Apenas o silêncio.
- Quem é?
Desligaram. Maju caiu em prantos. E o dia estava apenas começando."